terça-feira, 20 de outubro de 2009

O (Ig)Nobel de Saramago



Poucos escritores da chamada “alta literatura” conseguem causar tanta comoção no mercado editorial brasileiro quanto José Saramago. Basta o escritor português lançar um novo livro para rapidamente galgar posições na lista dos mais vendidos e começar a repercutir na mídia e nos fóruns de discussão na internet. Entretanto, não deixa de ser sintomático que, quanto mais Saramago cresce em popularidade, mais ele cai no conceito da crítica especializada.

Não é por menos. Desde 1998, quando o autor conquistou o Nobel de Literatura, a qualidade de seus livros vem traçando uma curva descendente, que teve em “Ensaio sobre a lucidez” seu ponto mais baixo. Foi-se o tempo em que o escritor era capaz de criar alegorias e explorá-las até o esgotamento. Hoje, seus livros sofrem de sérios problemas estruturais: lá pela metade de “As intermitências da morte”, a indecisão do escritor sobre o que fazer com a história é visível. Além disso, em seus romances mais recentes, sobra forma e falta conteúdo. É como se Saramago estivesse deslumbrado com o próprio estilo e tivesse se esquecido de que a boa literatura se faz principalmente com boas idéias. Em suas páginas, chovem frases de efeito, capazes até de cativar os leitores mais incautos, mas cujo objetivo não parece ser outro senão esconder um imenso vazio imaginativo.

Outro sintoma de que Saramago vem perdendo relevância está na sua recente insistência em voltar aos mesmos temas sem acrescentar nada de novo. Nada contra um escritor ter obsessões: Philip Roth vem criando uma bibliografia notável em torno da temática da velhice. No caso de Saramago, contudo, a repetição parece refletir um esgotamento ou uma tentativa de resgatar o brilho de seus anos dourados, quando era capaz de despertar a ira da Igreja e se via “obrigado” a se autoexilar na ilha de Lanzarote.

Esse parece ser o caso de “Caim”, seu novo romance que está sendo lançado nacionalmente esta semana (que, confesso, não li e, depois de tantas decepções, não pretendo ler) e que já vem com uma polêmica embutida. Polêmica tola, por sinal: na última semana, em Roma, Saramago afirmou: "Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o absoluto cinismo intelectual desta pessoa."

Ora, até mesmo eu que sou ateu sei que, para um cristão, o grande mérito está exatamente em acreditar em Deus sem que se tenha nenhuma prova de sua existência. Conforme explica Jostein Gaarder em seu “O livro das religiões”, “É apenas por meio da fé em Jesus que o homem pode ser salvo. (...) A fé tem mais a ver com o coração do que com a cabeça. Hoje em dia, muitas pessoas interpretariam o verbo crer como ‘ter uma convicção’ ou ‘achar que algo é verdade’. Em termos cristãos, é mais correto falar em ‘confiança’ ou ‘fidelidade’. A palavra latina ‘fé’ (fides) significa justamente isso.”

Ou, como escreveu Luis Felipe Pondé em crítica publicada na Folha do último sábado, “Saramago parece não ter percebido ainda que não é o ‘fator Deus’ que leva os homens a serem a besta fera que são, mas sim o ‘fator Homem’ que gera a bestialidade histórica de que ele tanto reclama.”

Um fã sempre poderá dizer que um Saramago ruim é melhor do que muita coisa por aí. Pode até ser. Mas o argumento esconde uma verdade incômoda: um Saramago ruim é pior do que muita coisa boa que vem sido feita por aí e, obviamente, é pior do que um Saramago bom. É válido que o leitor se indague por que ler “Caim” se 1) o autor já fez uma crítica contundente ao cristianismo no magistral “O evangelho segundo Jesus Cristo; e 2) há tantos escritores atualmente fazendo literatura mais relevante que a de Saramago (Lobo-Antunes, Gonçalo Tavares, Mia Couto, só pra ficar nos autores de língua portuguesa).

A discussão de “Caim”, portanto, já se esvazia antes mesmo de começar. Mas tudo bem: o próprio escritor afirmou, em entrevista ao Estadão, que espera que os católicos “não se metam com um livro que não lhe diz respeito”. A resposta permite, assim, um vislumbre da verdadeira proposta do livro: não se trata de gerar uma discussão construtiva, mas sim de falar e não escutar, de fazer barulho e vender horrores.

Recentemente, Saramago explicou sua intensa produtividade nos últimos anos: “Simplesmente, ainda tenho algumas coisas a dizer. Talvez com mais urgência porque o fim da minha vida se aproxima”. Para ficarmos na popularidade sem conteúdo, quiçá o melhor seja fazer como aquela personagem do Zorra Total que dizia “Eu só abro a boca quando tenho certeza”. Quem sabe assim o brilho do Saramago dos anos 80 e 90 seja capaz de sobreviver ao Saramago pós-Nobel.

***

Se gostar de “Caim”, procure também: bom, se você realmente gostar do chamado “Saramago tardio”, sugiro uma (re)visita às obras-primas “Ensaio sobre a cegueira”, “Memorial do convento” e “O evangelho segundo Jesus Cristo”. Estes, sim, são livros que merecem seu tempo e seu dinheiro.

3 comentários:

  1. Leonardo, muito bacana todo o texto e o argumento. Penso de modo semelhante. No final das contas, o último Saramago é cada vez mais uma tentativa de verdade, de tese, que não cabe tanto num mundo em que faltam (e se desconfia de...) modelos de solução, em que há dificuldade de se aceitar referências de salvação ou emancipação. Grande abraço, André Tezza

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  2. "Interminências" é muito bom enquanto a Morte vence. Depois estraga. E cá minha opinião: a obra-prima dele é "O ano da morte de Ricardo Reis."

    abs,

    Breno B.

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  3. Breno, sempre ouvi falar muito bem de "O ano da morte...", mas não o relacionei entre as indicações porque não o li. Achei que não seria honesto da minha parte. Abraço.

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