terça-feira, 13 de outubro de 2009

Abril Vermelho


O promotor distrital adjunto Félix Chacaltana Saldivar é um funcionário simples, quase simplório. Executa suas tarefas com presteza, leva uma vida solitária e sonha com uma promoção que, acredita, poderia redimi-lo aos olhos da ex-mulher. Certamente se daria por satisfeito se tudo seguisse nessa toada, não fosse estar envolvido na investigação de uma série de assassinatos brutais que tem início em sua cidade natal, a pequena Ayacucho, localizada no sul do Peru.

Acreditando estar prestando um serviço aos seus superiores, Chacaltana passa a buscar pistas por conta própria. Todos os indícios levam à conclusão de que a autoria dos crimes se deve ao Sendero Luminoso, fato que chama rapidamente a atenção da polícia e dos militares, que passam a ver no protagonista de “Abril Vermelho” um adversário aos seus próprios interesses.

Não é difícil de entender o porquê. Estamos nas vésperas das eleições presidenciais de 2000. Alberto Fujimori concorre mais uma vez ao pleito, usando como uma de suas principais plataformas a diminuição da violência e a eliminação dos focos terroristas. Qualquer notícia capaz de trazer a insegurança de volta à população é vista com maus olhos por aqueles que estão no poder.

Em sua empreitada quixotesca, Chacaltana irá esbarrar na burocracia dos órgãos envolvidos e no desinteresse dos colegas, que, em busca da ascensão profissional, não temem confundir consentimento com eficiência. Descobrirá matizes, até então por ele desconhecidos, entre as noções de certo e errado. E atravessará um arco narrativo que envolve a perda de sua inocência, a opção ciente pelo cinismo e o enveredamento por um caminho irreversível.

Com um estilo fluído e uma fina ironia, o escritor Santiago Roncagliolo traça um retrato impiedoso da sociedade peruana, que busca por uma purificação que não está na justiça nem na religião. O rancor entre as classes é crescente: a etnia quíchua, que forma o grosso da parcela desfavorecida, é vista pelos personagens como um povo limitado, sem direitos e sem representatividade. A violência impregna todas as esferas e não é à toa que os televisores estão sempre mostrando pessoas se agredindo e disputas familiares no melhor estilo “Márcia”. Os mortos na busca pela paz já são por demais numerosos para se manterem enterrados, e clamam para que se dê um sentido ao seu sacrifício. O resultado é uma guerra na qual não se sabe mais quem é o mocinho e quem é o bandido, porque as forças armadas e os terroristas há muito se confundem nas intenções e nos procedimentos.

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Em 2003, realizei, ao lado de quatro amigos, um projeto antigo: fazer um mochilão pelo Peru e pela Bolívia. Conforme o planejado, conheci todos os cartões postais e fiquei maravilhado com as ruínas históricas e com as belezas naturais dos dois países. Mas também vivi uma experiência marcante que não constava de nenhum dos guias de turismo sobre a América Latina.

Um dia, ao descer de um ônibus em La Paz, percebi que havia esquecido minha carteira sobre o banco. Rapidamente apanhei outro veículo da mesma linha, sem saber que o próximo ponto era muito, mas muito distante. Acabei parando no meio das cadeias de montanhas que cercam a cidade, uma curiosa série de formações geológicas que se assemelham a um castelo de areia molhada ou a um prédio de Gaudí. É lá onde moram, em sua grande maioria, os quíchuas pacenhos, etnia cujos representantes se consideram orgulhosamente os descendentes diretos da civilização inca.

Quem já viajou pelos países andinos é capaz de reconhecer um quíchua sem maiores dificuldades. Os homens têm estatura baixa, traços indígenas e geralmente se vestem com calça preta e camisa social clara. As mulheres levam um inconfundível chapéu coco e sempre carregam às costas uma trouxa de pano, onde costumam levar objetos de uso pessoal ou crianças de colo com cabeças balouçantes. Presentes na maioria dos países andinos, os quíchuas em geral levam uma vida miserável, escassa em alegria e dignidade. Sua presença oscila entre o inconveniente e o invisível. Muitas vezes são vistos como criminosos, mal intencionados e vagabundos.

Até aquele momento, todo o contato que eu havia tido com os quíchuas se restringia às insistentes mulheres que, aos gritos de “señor, señor”, pediam esmolas e vendiam badulaques em frente aos pontos turísticos, carregando criancinhas que, com roupas típicas, tiravam fotos com os turistas em troca de alguns centavos. Logo, essa impressão iria mudar.

Ao entrar nas montanhas, fui surpreendido por uma efusão de vitalidade. O bairro estava em festa. Um campeonato de futebol feminino transcorria em um campinho de areia, concentrando a atenção de centenas de moradores, que gritavam e cantavam entusiasticamente. Ao invés de humildade e subserviência, os olhares ostentavam orgulho e alegria. Todas as ruas estavam enfeitadas por bandeirinhas e outros ornamentos típicos, que sacudiam em sintonia com as festividades. E, ao lado de um conjunto de música andina, um menino de cerca de quatro anos fazia air guitar com uma garrafa pet de 2 litros. Não quero parecer sentimental, mas, em toda minha vida, nunca vi uma criança extrair tanta diversão de um brinquedo.

Acabei não recuperando a carteira: ela já havia desaparecido. Mas o passeio acabou valendo muito mais do que as poucas notas que ela continha.

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No dia seguinte, ao voltar de uma partida de futebol entre Bolívar e The Strongest, o grande clássico boliviano, chamaram minha atenção as centenas de luzes elétricas que partiam das casas dos quíchuas escondidas nas montanhas. Aquela visão conferia à noite de La Paz um aspecto quase surreal. Senti que olhava para um céu estrelado, não só pelos inúmeros pontinhos luminosos, mas por saber que aquele era um brilho emanado do passado, de uma glória extinta, que não mais correspondia à realidade atual.

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O Sendero Luminoso surgiu e teve seu auge nos anos 80, durante o primeiro mandato do atual presidente Alan García. Era um grupo guerrilheiro de extrema esquerda, que se propunha a instaurar um regime comunista liderado por camponeses no Peru. Aos poucos, os valores se subverteram, a organização se transformou em um fim em si mesma e, como tantas outras do gênero, acabou prejudicando aqueles que afirmava defender. O grupo foi duramente reprimido por Fujimori durante o final dos anos 90 e, desde então, vem tentando se manter vivo, através de ações terroristas esporádicas.

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Em 2006, a população indígena boliviana acreditou ter em Evo Morales um representante de sua classe, alguém capaz de entender e fazer valer seus anseios e suas necessidades. Deu no que deu: medidas populistas, muita fanfarronice e pouco resultado prático. O país continua entre os mais pobres da América Latina e sua economia segue extremamente dependente da exportação de recursos naturais. A desigualdade só faz crescer.

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Comprei meu exemplar de “Abril Vermelho” nas Livrarias Curitiba no dia 03/10, em uma promoção insana, em que diversos livros da Alfaguara (incluindo “As Benevolentes”, que não costuma sair por menos de R$ 80) estavam sendo liquidados por R$ 9,90. Até este final de semana, a promoção continuava valendo. Corre lá e aproveita.

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Se gostar de “Abril Vermelho”, procure também: “A cada um o seu”, de Leonardo Sciascia, e “A hora azul”, de Alonso Cueto.

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Título: Abril Vermelho
Autor: Santiago Roncagliolo
Editora: Alfaguara
292 páginas

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