Lá pelo terço final do romance “Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, o escritor Roberto Bolaño surge como personagem para fazer uma curiosa intervenção no rumo da história. Quando o protagonista, que escreve um livro sobre a guerra civil espanhola e não consegue encontrar uma testemunha-chave do conflito, indaga de Bolaño o que deveria fazer, o autor chileno não hesita:
"- Você terá que inventar a entrevista com Miralles. É a única e a melhor forma de terminar o romance. (...) A realidade sempre nos trai; o melhor é não dar tempo a ela e traí-la antes. O Miralles real te decepcionaria; é melhor que o invente: seguramente, o Miralles inventado é mais real que o real."
Contar mais é estragar o final do livro, que merece ser lido. Mas a importância do trecho não está somente no fato de estabelecer a virada principal na trama de “Soldados...”, mas principalmente na forma como simboliza o atual papel de Bolaño como guru do que de melhor tem surgido na literatura em língua espanhola nos últimos anos.
Morto precocemente em 2003 após uma série de complicações hepáticas, Bolaño deixou cerca de 20 livros, entre romances, contos e poesia, nos quais, não é exagero dizer, conseguiu reinventar a literatura latino-americana sem negar sua tradição. Misturando o urbano com o pitoresco e buscando referências na cultura européia, o escritor chileno criou uma obra que consegue ser pop sem ser rasa, um pastiche de estilos e referências que leva finalmente a literatura latino-americana ao encontro do (pós-)pós-moderno e permite que ela escape, enfim, das amarras do realismo fantástico. Nesse sentido, ele se liberta, e liberta a própria literatura do nosso subcontinente, de um certo autocentrismo, partindo rumo a uma universalidade enriquecedora que, ao se espelhar em outras tradições, consegue definir melhor sua própria identidade.
Não que essa transgressão seja necessariamente pioneira. Mas o mérito de Bolaño é assimilar o antigo e o vanguardista, pôr tudo no liquidificador e assim criar o novo. Em “Os Detetives Selvagens”, considerado por muitos sua obra-prima, é possível encontrar um experimentalismo que costuma render comparações com Julio Cortázar, ainda que o estilo do chileno não possua o hermetismo do seu colega argentino. Isso porque, nos livros de Bolãno, há pluralidade de narradores, há metanarrativa, mas há sobretudo uma boa história, muitas vezes convencional, quase sempre romântica. Seus livros agarram o leitor e o levam por uma jornada apaixonante, em que a tragédia e o patético freqüentemente se confundem. Seus personagens são invariavelmente escritores, que se jogam no mundo em pequenas aventuras, à procura de algo que não sabem definir (de si próprios?).
Essa obsessão por protagonistas latinos, exilados e malditos reflete a própria biografia do autor. Após apoiar Salvador Allende e ser preso por Pinochet, Bolaño abandonou o Chile e correu o mundo. Morou no México, em El Salvador, na França e na Espanha. Foi vigia noturno, camelô, guerrilheiro, boêmio, vagabundo. Passou necessidade, escreveu para sobreviver, usou muitas drogas. Em recente matéria publicada pela Folha de S. Paulo, Sarah Pollack, professora da City University de Nova York, chega a definir a aura cool de Bolãno como “uma mistura dos beatniks com Rimbaud”.
A comparação do escritor chileno com o famoso movimento sócio-cultural-filosófico-literário surgido nos EUA durante os anos 50 não merece parar por aí. No já citado “Os Detetives Selvagens”, os dois protagonistas, Ulises Lima e Arturo Belano (Belano, Bolaño, pegou?) partem em um carro rumo ao deserto de Sonora, à procura de uma poetisa perdida, antes de saírem viajando pelos mais diversos países. É uma espécie de “On the road” da era da globalização, já que, aqui, a estrada é substituída pelo próprio mundo.
E, assim como no clássico beat de Kerouak, o que o leitor encontra em “Os Detetives Selvagens” é uma história envolvente, daquelas que despertam uma vontade imensa de se viver uma experiência parecida, repleta de personagens capazes de deixar saudades após se chegar à última página. É inegável que a intensidade e a riqueza da narrativa se devem à vivência de Bolaño, que realmente passou por grande parte das peripécias às quais submete seus personagens. Não é à toa que, a certa altura de “Soldados de Salamina”, ele comente com o protagonista:
“- Para escrever romances, não é preciso imaginação. Só memória. Os romances se escrevem combinando lembranças.”
Para nossa felicidade, lições como essas vêm sendo assimiladas e aplicadas pelos inúmeros escritores que, através de seu estilo ou temática, dão atualmente continuidade ao legado de Bolaño para a literatura do nosso subcontinente e, por que não, do resto do mundo.
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O melhor de Roberto Bolaño:
"Os Detetives Selvagens" – A obra-prima
"2666" – Os méritos e defeitos de “Detetives” elevados à 2666ª potência
"Noturnos do Chile" – Para os iniciados no universo do autor
"Putas Assassinas" e "Llamadas telefónicas": os melhores livros de contos
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Alguns dos escritores que foram influenciados por Bolaño, ou fizeram parte de seu círculo de amizades, ou exploram temática similar à do escritor chileno:
Enrique Vila-Matas (ESP)
Antonio di Benedetto (ARG)
Rodrigo Fresán (ARG)
Alan Pauls (ARG)
Alberto Fuguet (CHI)
Javier Cercas (ESP)
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
O mundo de Bolaño
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