quinta-feira, 29 de outubro de 2009

1808, dois anos depois


Acabo de ler, com muito atraso, “1808”, de Laurentino Gomes. A essa altura, o livro já se consagrou como um bestseller inquestionável: figurou durante 104 semanas consecutivas na lista de mais vendidos da revista Veja e, segundo a Editora Planeta, já conta com “mais de 3 milhões de leitores” em todo o país (não me pergunte como chegaram a esse número). Além disso, a obra também arrebatou os prêmios Jabuti e Livro do Ano.

Não há como negar que “1808” tenha seus méritos. Consta que o livro consumiu 10 anos de pesquisas, cujo resultado é visível: em suas páginas transbordam dados, curiosidades e referências. Além de narrar a vinda da família real portuguesa para o Brasil, Gomes também joga luz sobre fatos e aspectos que costumam ser ignorados por outras obras do gênero, como o que aconteceu com Portugal durante o período em que D. João VI permaneceu na colônia e o que aconteceu ao monarca depois que voltou para a metrópole.

Mas provavelmente o grande mérito do livro seja também o seu maior defeito: “1808” é um impressionante compêndio de informações, e só. Nada de revelações bombásticas: D. João realmente carregava franguinhos em seus bolsos; Carlota Joaquina realmente tirou a poeira dos sapatos quanto partiu do Brasil. Nada de teses inovadoras: Gomes se limita a relatar os dados que compilou, de forma saborosa, vá lá, mas sem lançar um olhar diferente à historiografia já estabelecida.

Não deixa de ser irônico, portanto, que a grande revelação do livro seja relacionada à vida particular do arquivista real Luis Joaquim dos Santos Marrocos, figura menor sobre a qual Gomes dedica mais páginas do que necessário e cuja vida é usada para se traçar um paralelo artificial com a trajetória do próprio país.

Dessa maneira, “1808” se enquadra em uma linha editorial já explorada e consagrada pelo também jornalista Eduardo Bueno: a do livro de história que não questiona e não incomoda, mas instrui e diverte. Talvez isso explique sua enorme popularidade (além, é claro, do imenso hype feito pelas revistas da Abril). Nada de linguagem acadêmica ou do estilo exuberante de um Sérgio Buarque de Holanda: “1808” é fácil e gostoso de ler. Seus capítulos são curtos e sua temática, acessível.

Fica então a pergunta: “1808” é um bom livro? A resposta depende da sua expectativa como leitor. Se você espera um olhar original sobre um dos grandes momentos da nossa história, provavelmente irá se decepcionar. Mas, se a intenção é apenas passar algumas horas com uma leitura prazerosa, fruto de um grande trabalho de pesquisa, então a obra de Laurentino Gomes é um prato cheio.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O rock e a moda - Parte 1

Texto das antigas, que eu achei que viria a calhar aqui no Newsper


Pense na sua banda de rock favorita. Aquela que lota a memória do seu computador com dezenas de arquivos mp3 e que gravou aquele CD que nunca sai do toca-discos do seu carro. Uma banda que possui um sucesso com um refrão tão poderoso que faria você viajar algumas centenas de quilômetros apenas para cantá-lo junto com o vocalista, se arrepiando até o último fio de cabelo. Agora pense na maneira como essa banda se veste, nas roupas e acessórios que seus integrantes usam, e tente encaixar seu estilo dentro de algum movimento ou tendência da moda. Achou difícil? Provavelmente não.

Essa facilidade só ocorre porque, desde o final da Segunda Guerra e do nascimento do rock, a moda e a música costumam andar juntas, influenciando-se mutuamente. Mais do que meras manifestações culturais, ambas são um reflexo do que se passa na mentalidade da sociedade à qual são contemporâneas, revelando seus desejos, sonhos e ideologias. Esse processo se dá de diversas formas. Por vezes, uma banda lança moda, uniformizando o visual dos seus fãs nos quatro cantos do mundo. Por outras, a moda lança uma banda, que acaba agindo como porta-voz de um movimento social já existente. Por fim, há casos em que a moda e o rock se encontram tão intrinsecamente ligados que é impossível definir quem deu origem a quem.

Entretanto, da mesma forma como é difícil estabelecer quando foi o exato nascimento do rock, é bastante complicado precisar em que momento teve início essa relação tão íntima entre moda e música. Uma das possíveis respostas, e talvez a mais provável, é um tanto inusitada: o primeiro visual roqueiro a influenciar o imaginário da moda teria vindo do... cinema.

Rockers, existencialistas e Beatles
Entender é mais simples do que parece. Durante os anos 50, começou a surgir entre os jovens uma sensação de poder e rebeldia que os colocava em confronto direto com seus pais. Essa nova geração, que questionava ferozmente os valores burgueses da sociedade, encontrou em ídolos como James Dean e Marlon Brando um modelo a ser seguido, uma vez que esses dois atores encarnavam o estereótipo de eterna juventude e representavam uma fuga da vida medíocre e voltada ao trabalho que então imperava. Tendo essas referências em mente, por todos os lados começaram a pipocar adolescentes vestindo camisetas e jeans gastos, jaquetas de couro preto e cabelo com brilhantina, tal qual os ícones hollywoodianos. Esses mesmos jovens também viram na rebeldia do rock um instrumento para canalizar seus anseios, o que acabou por levar o visual rebelde também para o meio musical.

James Dean apontando para a direita.

Mas os “rockers”, como eram chamados, não estavam sozinhos. Convivendo não muito pacificamente com eles havia os “existencialistas”. Fãs de Sartre, Beauvoir e Camus, os grupos de existencialistas eram compostos basicamente por artistas e estudantes universitários que demonstravam sua oposição ao sistema de uma forma um pouco mais intelectualizada. Também eram adeptos das jaquetas de couro, ainda que estas fossem mais curtas que as de seus rivais roqueiros. Gostavam de usar roupas escuras, calças justas e suéteres com gola olímpica. Seguiam a moda francesa de pentear o cabelo para frente e se esforçavam em transmitir um imperturbável ar blasé.

Marlon Brando: "Então não brinco mais."

Foi numa tentativa de conciliar a moda de rockers e existencialistas, agradando aos dois públicos, que surgiu o famoso visual dos Beatles. O corte de cabelo, considerado escandaloso para a época, foi uma mistura do corte francês adotado pelos existencialistas com o corte rocker, mais volumoso na parte de trás. Os ternos sem lapela, desenhados pelo então “alfaiate dos astros” Dougie Millings, foram inspirados em paletós curtos estilo mod que os quatro rapazes de Liverpool haviam visto no bairro de Montmartre, durante uma viagem à capital francesa. Já as “botas Beatle”, com salto de altura média, eram compradas em uma loja de artigos para dança e teatro em Londres.

"Esta é a última vez que eu explico, Ringo: quando a música acaba, só um pode sentar na cadeira."

A música e a moda dos Beatles explodiram rapidamente, influenciando de forma definitiva o som e o visual de inúmeros grupos. Da noite para o dia, a impressão que se tinha era que o mundo inteiro se vestia como John, Paul, George e Ringo. Liverpool obviamente se tornou pequena para a banda, e a coisas tomaram uma proporção tão absurda que só havia um caminho a seguir. Esse caminho levava a Londres.




Continua...

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Maratona AFI - #100 - A canção da vitória


Seja sincero: o que você faria se alguém te obrigasse a assistir a um clássico em preto e branco dos anos 40? Talvez até topasse, certo? Mas antes de responder saiba que se trata de um musical. E não é só: dizem por aí que a história é uma tremenda patriotada americana, repleta de bandeiras, listras e estrelinhas.

Bom, essa era mais ou menos a sensação que eu tinha ao colocar o disco de “A canção da vitória” pra rodar no meu aparelho de DVD. Talvez você fique ainda mais desconcertado ao saber que a pessoa que me obrigou a passar por essa experiência era ninguém mais, ninguém menos, do que eu próprio, Leonardo, 30 anos, redator em crise.

Antes que você saia me acusando de sadomasoquismo ou resmungue algo do tipo “Eu sempre achei esse cara meio estranho mesmo”, vou tentar explicar como fui parar no meio dessa situação insólita. Para isso, terei que voltar um pouco no tempo.

Em 1997, o American Film Institute, organização dedicada “ao reconhecimento e à celebração da excelência na arte” do cinema, elegeu o que seriam os “100 melhores filmes americanos de todos os tempos”. Como toda lista que se preze, a relação foi criticada, detonada e desprezada por especialistas do mundo todo. De qualquer forma, acabou se tornando referência para diversos cinéfilos, incluindo aí este que vos escreve, e ganhou inclusive uma versão atualizada 10 anos depois.

Estamos de volta a 2009. Este intrépido blogueiro, em uma tarde de pouca inspiração, decide que seria por bem assistir, ou reassistir, a cada um dos 100 filmes da lista original da AFI e comentá-los aqui no Newsper porque:

a) Achou que, na pior das hipóteses, seria um bom aprendizado sobre a sétima arte;
b) Adora completar uma lista;
c) Não tem nada melhor para fazer.

Tomada a decisão mais difícil, qual seja, a de realizar a viagem, faltava apenas definir qual seria a rota. Decidi então começar pelo 100º lugar, que se trata justamente de “A canção da vitória”, e a partir daí ir assistindo filme por filme até chegar ao primeiro colocado.

Bom, agora você entende.

Mas antes de dar a minha opinião geral sobre a experiência, um pouquinho de história. “A canção da vitória” (ou “Yankee Doodle Dandy” no original) foi lançado em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial. O filme retrata a vida de George M. Cohan, um dos maiores astros dos musicais americanos do início do século XX. Tudo bem que, no filme, a vida do sujeito seja um pouco romanceada (na verdade, muito romanceada). Cohan é retratado como um tipo simpático, apoiado por sua família até mesmo nas decisões mais difíceis, casado com uma mulher submissa e condescendente, o que, como é fácil de descobrir na Internet, não corresponde necessariamente à verdade.

Responsável por vários sucessos da Broadway, Cohan tinha na dramatização de sua biografia um potencial êxito de público. Por isso, a Warner não quis arriscar e escalou Michael Curtiz para a direção. Talvez você não esteja ligando o nome à pessoa: Curtiz é o homem por trás de “Casablanca”, também de 1942, e de mais 160 filmes que o consagraram como um dos mais versáteis talentos da Warner. Na época, o estúdio era famoso por seus filmes de gangsters, que tinham nos atores Edward G. Robinson e James Cagney dois de seus maiores ícones. Pois é justamente Cagney, que já havia sido dirigido por Curtiz no filme “Anjos de cara suja”, quem interpreta o protagonista de “A canção da vitória”. Conhecido por seus tipos durões, foi no papel de Cohan que o ator pôde finalmente exibir seus dotes de dançarino e cantor, em uma atuação que seria recompensada com o Oscar daquele ano.

Bogart e Cagney em Anjos de cara suja: "Isto é por trocar a Ingrid Bergman por aquele capitão bigodudo!"

Repleto de números musicais com temas tipicamente americanos, o longa é assumidamente patriótico. Também pudera: durante a guerra, o cinema passou a ser visto como uma forma de levantar o moral da nação e fazer propaganda dos ideais democráticos. Consta que, já em 1942, 1/3 dos filmes saídos de Hollywood tinham como cenário os campos de batalha. O público correspondeu comparecendo às salas de cinema em massa e, ao final do conflito, as bilheterias já se comparavam às do período anterior à Grande Depressão.

A história de “A canção da vitória” não tem muito segredo: ao ser chamado para conversar com o então presidente Franklin Roosevelt, Cohan tem a oportunidade de contar a sua vida, explicando como saiu de uma família de pequenos artistas para se tornar uma das grandes figuras da Broadway. Os números musicais, portanto, fazem parte do contexto do filme. Ou seja, nada daquelas cenas em que os personagens começam a cantar no meio de um diálogo, acompanhados por desconhecidos que, sabe-se lá como, também conhecem a letra da música.

Até o Sarney faz a sua pontinha.

A essa altura talvez você já esteja se perguntando, “Mas, afinal, vale a pena o programa?”, ao que eu prontamente respondo, “Sim, meu pequeno gafanhoto”. Talvez porque, e agora tire as crianças da sala porque vou fazer uma revelação bombástica, eu gosto de musicais. E, caso você tenha preconceito contra o gênero, eu recomendo: experimente assistir a um musical, nem que seja apenas uma vez na vida. De preferência a algum clássico, como “Dançando na chuva”. Você vai se surpreender, porque muitas das canções e coreografias são realmente empolgantes. Se ainda tiver alguma pulga atrás da sua orelha, pense: oras bolas, o tal do Cohan não deve ter feito sucesso por acaso. Certamente há de haver algo de interessante em suas músicas.

Além disso, você há de convir que um diretor como Curtiz, com tantos filmes nas costas, deve saber o que está fazendo. A história tem ritmo, James Cagney é realmente carismático e, ainda que algumas situações sejam um pouco previsíveis e esquemáticas, há alguns diálogos realmente bem sacados.

De forma que “A canção da vitória” acabou se revelando, no final das contas, um filme bastante simpático. Tudo bem que você provavelmente terá vontade de dar uma surra na versão mirim do protagonista ao menos umas cinco vezes durante a primeira meia hora de projeção. Mas, se baixar suas defesas, eu garanto que, assim como eu, você pode acabar se divertindo.

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Título: A canção da vitória (Yankee Doodle Dandy)
Direção: Michael Curtiz
Com: James Cagney, Richard Whorf, Joan Leslie
Gênero: Musical
Ano: 1942
126 min.

Pós-Copenhague

Estamos a 45 dias do encontro de Copenhague no qual serão discutidas novas metas para a redução das emissões de gases de efeito estufa. É uma espécie de pós-Kyoto, que previa metas para os países desenvolvidos até 2012 e que não foi cumprido totalmente, em grande parte por causa da ausência dos EUA. E agora podemos ver a história se repetir. Fala-se já em um pós-Copenhague nos círculos mais céticos da negociação internacional. O que pode dar errado em na Dinamarca?

1. Os Estados Unidos dão poucos sinais de que cumpririam uma meta estabelecida em acordo internacional. Preferem metas próprias, menores. Também exigem limites para os emergentes.

2. Os dois emergentes que mais poluem, China e Índia, estão muito pouco inclinados em aceitar metas, ou metas ambiciosas, como exigem os ambientalistas.

3. Há muitas dúvidas sobre como funcionariam os mecanismos de compensação de emissões entre países ricos e pobres, sobre as fontes de financiamento e sobre o funcionamento do mecanismo de redução do desmatamento. Não adiantaria metas sem isso.

O Brasil diz um dia que vai ter meta, no outro diz que não - fruto da divisão entre ministérios envolvidos com o assunto. Sem uma meta global, não seria diplomaticamente recomendável que o país aceitasse reduzir sozinho e sem financiamento externo suas emissões. Também seria um erro não apresentar boa vontade em reduzi-las, principalmente através da diminuição do desmatamento, nossa maior fonte de gases de efeito estufa. Há quem aposte que o Brasil vai apresentar um instrumento intermediário: um compromisso em reduzir o desmatamento, com um percentual não muito ambicioso.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O desinformante!


Mark Whitacre é um executivo aparentemente simpático, quase bonachão, que trabalha na ADM, uma multinacional da área de alimentos. Um dia, ao ser designado para detectar uma falha na linha de produção de sua empresa, Whitacre rapidamente levanta a possibilidade de espionagem industrial. O fato chama a atenção do FBI, que, ao pressionar o protagonista em busca de mais informações, acaba tomando conhecimento da existência de um grande cartel internacional, supostamente liderado por diretores da própria ADM, formado por empresas cujo objetivo é controlar os preços de seus produtos no mercado mundial.

Essa é a história verídica de “O desinformante!”, longa dirigido por Steven Sordebergh, que seria apenas mais um filme sobre os bastidores escusos das grandes corporações não fosse por um detalhe: a questionável idoneidade do próprio Whitacre. Seria ele realmente uma fonte confiável? Será que Whitacre não passaria de um mitômano ou teria ele um interesse especial nos resultados das investigações?

Grande parte do mérito por tornar o protagonista de “O desinformante!" tão interessante está na atuação de Matt Damon. O ator, que engordou diversos quilos para encarnar Whitacre, confere ao personagem uma série de pequenos trejeitos, que contribuem para fazer do executivo uma figura ainda mais intrigante. Os fãs de Sordebergh também não irão se decepcionar, já que “O desinformante!” carrega todas as características que marcaram as outras comédias do diretor: o clima setentista, a fina ironia, a trilha sonora engraçadinha, os diálogos espertos, o humor muitas vezes involuntário dos personagens.

Entretanto, ainda que traga um ar de novidade aos filmes de espionagem corporativa, “O desinformante!” acaba padecendo do mesmo defeito de outros exemplares recentes do gênero, como “Duplicidade” e “Conduta de risco”: o de despertar aquela incômoda sensação de parecer mais longo do que realmente é. Sua história, rocambolesca, aos poucos vai se tornando repetitiva e previsível. Para cada mentira descoberta pelo FBI, Whitacre é capaz de inventar uma nova, mais escabrosa, que por sua vez será novamente descoberta e assim por diante.

Felizmente, é sobre a misteriosa figura de Whitacre, e não sobre a investigação em si, que Sordebergh se debruça com mais afinco. Repleta de contradições e idiossincrasias, é a personalidade do protagonista o elemento que confere força ao filme, garantindo a funcionalidade da história e fazendo com que o espectador saia do cinema satisfeito com o que viu.

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“O desinformante!” foi distribuído no Brasil com legendas extremamente finas, que freqüentemente desaparecem em meio à fotografia superexposta do filme. Para piorar, assisti ao longa no Unibanco Arteplex (cinema do qual gosto bastante, pelos títulos e preços), cuja cópia estava com um som horroroso, repleto de chiados. Fica, portanto, a dica: vá a outro cinema ou espere o DVD.

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Se gostar de “O desinformante!”, procure também: “Duplicidade”, de Tony Gilroy, e “Queime depois de ler”, de Ethan e Joel Coen.

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Título: O desinformante!
Diretor: Steven Sordebergh
Gênero: comédia
108 minutos

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Capital abundante

Está curiosa a choradeia da BM&FBovespa contra a taxação do capital externo que entra no país. A Bovespa é uma empresa privada, com ações negociadas em bolsa e que lucra com as taxas pagas em cada operação. Quando o governo anunciou que cobraria IOF do capital externo, seus papéis perderam valor porque os investidores temiam que ela perderia alguns clientes e, claro, faturamento. Nos últimos três dias a Bovespa vem argumentando que o mercado de capitais deu um passo atrás, mas ela não é grande fonte para discutir o assunto. Igualar o interesse público com o da companhia (e não discute-se aqui a importância de uma bolsa organizada, o que é bom para o país) é um pouco superficial.
Na briga entraram também outras empresas que dizem que irão perder com o custo mais alto de operações com capital externo, em especial a emissão de títulos. Até exportadores reclamaram, pois sabe-se que a medida pouco mexe com a cotação do dólar.
Mesmo com toda a crítica, a medida de cobrar imposto desses investimentos tem lá seu sentido. O governo aproveitou uma chance única: arrecadar mais com um imposto que pouco pune a produção, com a vantagem de segurar um pouco o inchaço nos mercados financeiros. O Brasil vem recebendo uma enxurrada de dólares captados a custo zero, ou menos de zero, e que rendem bem com a arbitragem entre os juros brasileiros e os pagos no exterior - ou com o rendimento mais robusto de sua bolsa. Mexer com capital externo ficou mais caro, fazer o quê?
Mudar o foco da reclamação. É hora de cobrar do governo o que ele vai fazer com a arrecadação extra. Fala-se em algo como R$ 10 bilhões a mais por ano, que não deveriam ir para o custeio da máquina estatal. Mas vão. Se a ideia é mesmo fazer uma política contracíclica, que evite bolhas e reaja a recessões, o dinheiro deveria ser usado para reduzir a dívida pública e criar uma "gordura" que poderá ser queimada na próxima recessão (que, acreditem, pode não estar tão longe). Em uma nova crise, o governo poderia ter margem para reduzir o imposto e atrair capital (se necessário) ou aumentar a dívida para estimular a economia de alguma outra forma.

O lucro do Kindle

Outro dia o Leonardo fez algumas considerações sobre o Kindle. Pois hoje foi divulgado um belo crescimento no lucro da Amazon (62%, nada mal para um período de crise) puxado justamente pelo aparelhinho de leitura. É um pequeno sinal do potencial dessa mídia, e que deixa com pé atrás quem trabalha com a criação de conteúdo e está acostumado a controlar também sua distribuição. Se quiser usar o Kindle para distribuir suas notícias, uma revista, por exemplo, deixará de ter o custo da gráfica para ter o custo Amazon - e não é pouco o que a empresa cobra. Mas isso em um mercado ainda com pouca competição e que logo pode ser invadido por concorrentes.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Distrito 9


A essa altura, você já deve estar careca de ouvir falar sobre “Distrito 9”, o filme-sensação da temporada. Sabe que a história gira em torno de um grupo de ETs refugiados em Johannesburgo, sabe que se trata de uma metáfora do apartheid e sabe que o longa foi produzido por Peter Jackson, o diretor de “Senhor dos Anéis”.

O longa gerou um certo burburinho na imprensa especializada, não só por sua criativa campanha de marketing (cartazes foram espalhados pelos EUA com a imagem de um ET acompanhada por um número de disque-denúncia) ou por seu faturamento de US$ 163 milhões ao redor do mundo (custou “apenas” US$ 30 milhões), mas por, supostamente, trazer um ar de renovação aos filmes de ficção-científica.

Infelizmente, ao final de seus 112 minutos, chega-se facilmente à conclusão de que o filme tem pouco de inovador. O começo até promete: os personagens e a trama básica são apresentados na forma de um documentário, com todas as características típicas do gênero: câmera tremida, depoimentos contraditórios, imagens desfocadas. Os efeitos especiais são fantásticos, principalmente quando se leva em consideração o orçamento "modesto" da produção. As analogias com a realidade dos negros na África do Sul (e com qualquer outro povo que sofra com alguma forma de repressão e discriminação) durante o infame regime segregacionista são criativas e pertinentes. O elemento gore é usado de forma interessante: em um filme sobre genocídio, é muito mais tolerável assistir a alienígenas explodindo do que humanos. Dessa forma, o longa consegue a façanha de manter o foco sobre suas questões principais sem se tornar uma experiência apelativa e, ao mesmo tempo, sem perder a força de sua temática, pois não é obrigado a fazer concessões para se tornar mais palatável.

O grande problema de “Distrito 9” é que as críticas sociais rapidamente dão lugar a uma trama banal de ação, com todos os defeitos do gênero: muito barulho, tiros e explosões inconseqüentes por todo lado. O que antes era uma mistura de “Cidade de Deus” com “Guerra dos Mundos” acaba virando uma espécie de “Transformers” na favela. O filme entra então em um terreno delicado: ao usar a temática da intolerância para construir um blockbuster, “Distrito 9” se aproxima exatamente do processo de espetacularização da tragédia que pretendia criticar.

Mas, enfim, talvez a maior prova de que “Distrito 9” não passa de mais do mesmo seja esta: o filme termina em aberto, e uma continuação já está sendo discutida. Acaba de nascer mais uma franquia. Sinal de que, por mais que humanos sejam substituídos por alienígenas, a história continua sempre a mesma.

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“Distrito 9” é uma adaptação do curta “Alive in Joburg”, também dirigido por Neill Blomkamp, e que você pode conferir abaixo:





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Título: Distrito 9
Diretor: Neill Blomkamp
Gênero: Ação
112 minutos

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Comportamento contagioso

"

Não é novidade a tese de que a obesidade é contagiosa. Um estudo publicado em 2007 por pesquisadores de Harvard e da Universidade da Califórnia acompanhou um grupo de pessoas durante um período de 30 anos e notou que havia um ganho de peso maior em quem tinha conexões fortes com alguém obeso. O fenômeno foi bem resumido em uma animação feita com bolinhas. E isso tem tudo a ver com o post anterior que questionava a possibilidade de encontrarmos logo uma nova bolha econômica pela frente. No caso da conexão dos gordinhos, a hipótese levantada pelos pesquisadores é que há um fator comportamental importante na evolução do nosso peso. Somos influenciados por nossos conhecidos e tendemos a imitar o comportamento dos outros -- o que vale para hábitos alimentares. Se você quer perder peso, saia com pessoas que comem muita salada (ok, é uma conclusão simplista, mas é mais ou menos isso).

Economistas que estudam como o comportamento das pessoas influencia decisões que, em teoria, são racionais, apresentam uma tese muito boa para entender as bolhas. Quando nossas conexões mais próximas estão refinanciando a casa para pagar a conta de cartão de crédito, temos algum incentivo para fazer o mesmo. O risco de um comportamento comum virar bolha vem quando ele passa a influenciar a tendência de todo um mercado. Os preços das casas nos EUA, para ficar na causa da última crise, subiram muito rápido, o que reforçava o comportamento arriscado de tomar empréstimos partindo do princípio de que o valor futuro da casa pagaria o financiamento. Do outro lado do balcão, os executivos de Wall Street tinham incentivos para conceder empréstimos arriscados porque, bem, todos estavam fazendo o mesmo para garantir o bônus de fim de ano.

Tivemos em Curitiba outro fenômeno que foi uma quase-bolha. Com o surto de gripo suína, houve uma sensação de pânico que só encontrou conforto na onipresença dos tubinhos com álcool em gel. Não adiantava argumentar que água e sabão são mais eficientes. Gente que vinha de outras cidades achava no mínimo estranho a neura com o álcool. O preço do álcool disparou e acredito que muitas lojas passaram a fazer estoque do produto para explorar a alta. Naturalmente, a bolha desinflou sem danos econômicos (fora para quem pagou R$ 50 por um tubo de álcool que hoje não vale R$ 5).

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Rio não é Londres


Pegou mal, muito mal mesmo, na imprensa internacional o mais recente episódio da guerra nos morros do Rio de Janeiro, poucos dias depois de a cidade ter sido escolhida como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Jornais de todo o mundo destacaram os tiroteios que mataram 21 pessoas no último fim de semana, três delas após a queda de um helicóptero da polícia, abatido a tiros por traficantes.
As cenas, que mais parecem de um filme de Hollywood, impressionaram correspondentes estrangeiros e repercutiram especialmente em jornais de países envolvidos diretamente na disputa pela sede da dita Olimpíada, como Estados Unidos e Espanha.
O Chicago Tribune, principal jornal de uma das três cidades superadas pelo Rio na eleição final do Comitê Olímpico Internacional (COI), destacou as promessas feitas pelas autoridades brasileiras de que haverá segurança durante a Olimpíada, “apesar das guerras de gangues”. O veículo ressaltou ainda que os tiroteios no Morro dos Macacos ("Monkey Hill"), aconteceram a cerca de cinco milhas de umas das áreas que receberão competições daqui a menos de sete anos.
Na Espanha, cuja capital Madri foi a última cidade derrotada pelo Rio na disputa por 2016, os principais jornais, independente da linha editorial, também deram espaço aos lamentáveis incidentes do fim de semana. O El País, jornal de linha esquerdista, em matéria do correspondente Francho Barón, afirmou que o episódio mostra que as “facções criminosas, quando se propõem a isso, seguem tendo a capacidade de semear o pânico na cidade mais turística do país.”
O jornal deu destaque ainda ao relatório apresentado na última quinta pela ONG Viva Rio, que denunciou o precário controle sobre as armas de fogo que circulam pelo Brasil. O correspondente do El País afirma que isso outorga um poder de fogo aos grupos delinquentes que preocupa as autoridades cariocas principalmente por conta dos Jogos Olímpicos de 2016.
O El Mundo, publicação de direita, destacou as afirmações de Lula, que promete “limpar a sujeira” do Rio de Janeiro até 2016.
Mas além das críticas, veladas ou descaradas, contra a escolha da capital fluminense para receber a Olimpíada, os jornais estrangeiros destacaram um contraponto: as declarações do inglês Craig Reedie, membro do comitê executivo do COI. Ele comparou a situação vivida pelo Rio neste fim de semana com aquela passada por Londres em 2005, pouco antes de ter sido escolhida sede dos Jogos de 2012.
Há pouco mais de quatro anos, a capital inglesa sofreu quatro atentados terroristas simultâneos em ônibus e estações de metrô, que deixaram 52 mortos. Segundo Reedie, mesmo com esse histórico, hoje ninguém fala em evitar a Olimpíada em Londres por razões de segurança. “Lamento profundamente o que aconteceu no Rio, mas devo dizer que parece insignificante comparado com o que ocorreu em Londres em 2005”, disse o dirigente do COI.
Com todo respeito ao senhor Reedie e, principalmente, às vítimas do atentado de 2005, a situação das duas cidades não tem nada de parecido. É claro que uma ação terrorista, imprevisível e causando dezenas de mortes de uma única vez, aparentemente choca muito mais do que uma guerra entre bandidos e policiais. Mas no caso de Londres, trata-se de um episódio isolado.
O problema no Rio é muito mais grave. Chega a ser crônico. Mesmo sem acesso às estatísticas, é possível afirmar categoricamente que, apenas nestes 20 dias de outubro de 2009, mais do que 52 pessoas foram vítimas da violência na sede dos Jogos de 2016.
A promessa das autoridades é que a Olimpíada deixará inúmeros legados, um deles na área da segurança. Difícil acreditar, porém, que em menos de sete anos o poder público retome o controle de áreas abandonadas a sua própria sorte e dominadas por um verdadeiro poder paralelo. Isso exige não apenas a aplicação de centenas de milhões de reais para se equipar as forças de segurança, como já foi prometido, mas principalmente investimentos pesadíssimos em reurbanização das favelas, educação, saúde e programas efetivos de inclusão de jovens carentes.
Espera-se que tudo isso seja feito, apesar de ser mais fácil apostar que apenas haverá uma trégua entre traficantes e policiais durante as duas semanas dos Jogos de 2016, voltando tudo a ser como antes quando a pira olímpica for apagada. E o mais triste de toda a situação é saber que um país precisa ter o pretexto de sediar um grande evento internacional para só então pensar em se mobilizar para cumprir com obrigações básicas.

O (Ig)Nobel de Saramago



Poucos escritores da chamada “alta literatura” conseguem causar tanta comoção no mercado editorial brasileiro quanto José Saramago. Basta o escritor português lançar um novo livro para rapidamente galgar posições na lista dos mais vendidos e começar a repercutir na mídia e nos fóruns de discussão na internet. Entretanto, não deixa de ser sintomático que, quanto mais Saramago cresce em popularidade, mais ele cai no conceito da crítica especializada.

Não é por menos. Desde 1998, quando o autor conquistou o Nobel de Literatura, a qualidade de seus livros vem traçando uma curva descendente, que teve em “Ensaio sobre a lucidez” seu ponto mais baixo. Foi-se o tempo em que o escritor era capaz de criar alegorias e explorá-las até o esgotamento. Hoje, seus livros sofrem de sérios problemas estruturais: lá pela metade de “As intermitências da morte”, a indecisão do escritor sobre o que fazer com a história é visível. Além disso, em seus romances mais recentes, sobra forma e falta conteúdo. É como se Saramago estivesse deslumbrado com o próprio estilo e tivesse se esquecido de que a boa literatura se faz principalmente com boas idéias. Em suas páginas, chovem frases de efeito, capazes até de cativar os leitores mais incautos, mas cujo objetivo não parece ser outro senão esconder um imenso vazio imaginativo.

Outro sintoma de que Saramago vem perdendo relevância está na sua recente insistência em voltar aos mesmos temas sem acrescentar nada de novo. Nada contra um escritor ter obsessões: Philip Roth vem criando uma bibliografia notável em torno da temática da velhice. No caso de Saramago, contudo, a repetição parece refletir um esgotamento ou uma tentativa de resgatar o brilho de seus anos dourados, quando era capaz de despertar a ira da Igreja e se via “obrigado” a se autoexilar na ilha de Lanzarote.

Esse parece ser o caso de “Caim”, seu novo romance que está sendo lançado nacionalmente esta semana (que, confesso, não li e, depois de tantas decepções, não pretendo ler) e que já vem com uma polêmica embutida. Polêmica tola, por sinal: na última semana, em Roma, Saramago afirmou: "Que Ratzinger tenha a coragem de invocar Deus para reforçar seu neomedievalismo universal, um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o absoluto cinismo intelectual desta pessoa."

Ora, até mesmo eu que sou ateu sei que, para um cristão, o grande mérito está exatamente em acreditar em Deus sem que se tenha nenhuma prova de sua existência. Conforme explica Jostein Gaarder em seu “O livro das religiões”, “É apenas por meio da fé em Jesus que o homem pode ser salvo. (...) A fé tem mais a ver com o coração do que com a cabeça. Hoje em dia, muitas pessoas interpretariam o verbo crer como ‘ter uma convicção’ ou ‘achar que algo é verdade’. Em termos cristãos, é mais correto falar em ‘confiança’ ou ‘fidelidade’. A palavra latina ‘fé’ (fides) significa justamente isso.”

Ou, como escreveu Luis Felipe Pondé em crítica publicada na Folha do último sábado, “Saramago parece não ter percebido ainda que não é o ‘fator Deus’ que leva os homens a serem a besta fera que são, mas sim o ‘fator Homem’ que gera a bestialidade histórica de que ele tanto reclama.”

Um fã sempre poderá dizer que um Saramago ruim é melhor do que muita coisa por aí. Pode até ser. Mas o argumento esconde uma verdade incômoda: um Saramago ruim é pior do que muita coisa boa que vem sido feita por aí e, obviamente, é pior do que um Saramago bom. É válido que o leitor se indague por que ler “Caim” se 1) o autor já fez uma crítica contundente ao cristianismo no magistral “O evangelho segundo Jesus Cristo; e 2) há tantos escritores atualmente fazendo literatura mais relevante que a de Saramago (Lobo-Antunes, Gonçalo Tavares, Mia Couto, só pra ficar nos autores de língua portuguesa).

A discussão de “Caim”, portanto, já se esvazia antes mesmo de começar. Mas tudo bem: o próprio escritor afirmou, em entrevista ao Estadão, que espera que os católicos “não se metam com um livro que não lhe diz respeito”. A resposta permite, assim, um vislumbre da verdadeira proposta do livro: não se trata de gerar uma discussão construtiva, mas sim de falar e não escutar, de fazer barulho e vender horrores.

Recentemente, Saramago explicou sua intensa produtividade nos últimos anos: “Simplesmente, ainda tenho algumas coisas a dizer. Talvez com mais urgência porque o fim da minha vida se aproxima”. Para ficarmos na popularidade sem conteúdo, quiçá o melhor seja fazer como aquela personagem do Zorra Total que dizia “Eu só abro a boca quando tenho certeza”. Quem sabe assim o brilho do Saramago dos anos 80 e 90 seja capaz de sobreviver ao Saramago pós-Nobel.

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Se gostar de “Caim”, procure também: bom, se você realmente gostar do chamado “Saramago tardio”, sugiro uma (re)visita às obras-primas “Ensaio sobre a cegueira”, “Memorial do convento” e “O evangelho segundo Jesus Cristo”. Estes, sim, são livros que merecem seu tempo e seu dinheiro.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Almoço em agosto


Na tradicional fórmula hollywoodiana, um personagem feminino idoso tem duas funções possíveis: ou é a mentora taradinha “pra frentex”, ou é a megera de quem o protagonista precisa se livrar para chegar ao seu objetivo final. Dessa forma, podem causar um certo estranhamento na platéia as velhinhas de “Almoço em agosto”, comédia italiana escrita, dirigida e protagonizada por Gianni di Gregorio.

A história é simples: Gianni, um homem de meia-idade que mora com a mãe, aceita hospedar em seu apartamento, durante um feriado, três senhoras de idade, em troca do perdão de suas dívidas. E isso é tudo, porque “Almoço em Agosto” não tem reviravoltas incríveis, não tem estereótipos fáceis e, pode ter certeza, essa turminha da pesada não vai se meter em altas confusões.

Na verdade, a graça do longa surge do olhar apurado de Gianni di Gregorio para captar características universais da terceira idade. É impossível, para o público, não reconhecer uma avó ou aquela tia velhinha nos gestos, nas birras, nas manias ou na morosidade da conversa das quatro coroas (os sinônimos estão acabando) sobre as quais se debruça o filme.

O riso, então, surge tímido e vai ganhando força à medida que o espectador se identifica com as agruras do personagem principal. A iluminação e as atuações naturalistas contribuem para uma sensação de realidade: é como se nos sentíssemos em casa, ou se estivéssemos espiando os excertos do dia-a-dia de um vizinho, em um prazer quase voyeurístico.

“Almoço em agosto” é um filme saboroso, daqueles que deixam a platéia com um sorrisão no rosto na saída do cinema. Não vai fazer você chorar de rir, mas, convenhamos, é uma alternativa melhor que a última comédia romântica da Cameron Diaz e do Ashton Kutcher.

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Se gostar de “Almoço em agosto”, procure também: “O filho da noiva”, de Juan José Campanella e “Ninho vazio”, de Daniel Burman.

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Título: Almoço em agosto
Diretor: Gianni di Gregorio
Gênero: comédia
75 minutos

2007 revivido

Muita gente voltou a valar em bolha e "descolamento". Para quem não conhece bem os termos, eles estão intimamente ligados à crise econômica e ao pânico que jogou a economia global em uma baita recessão. Até o começo de 2007 os preços dos imóveis nos EUA e em alguns países europeus subiam sem parar, em parte porque havia muito dinheiro barato pronto para assumir os riscos do mercado. Uma bolha, que deu origem à crise . Na mesma época, falava-se que os mercados emergentes haviam descolado do mundo rico e que não sofreriam durante o processo de esvaziamento da bolha. A tese estava furada - embora, é verdade, a recuperação nos emergentes esteja acelerada. Os dois termos voltaram porque os mercados se recuperaram de forma surpreendente. Os preços das ações estão perto do ponto visto antes da crise, as commodities subiram e até os preços dos imóveis nos EUA dão sinais de vida. Em grande medida, os preços são sustentados por dinheiro barato injetado pelos bancos centrais. Se voltarmos ao diagnóstico da bolha de 2007, o cenário é parecido. Dinheiro barato aumenta o apetite por risco e, pior, com a sensação de que, caso algo dê errado, os governos voltarão a intervir. E, como em 2007, voltou a tese do descolamento - a qual não está pronta para sobreviver a um teste prático. Como estruturalmente nada mudou ainda na economia global, estes dias de retomada são mais perigosos do que parecem. Quem quiser ir adiante pode ler este texto publicado no Financial Times de hoje.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O mundo de Bolaño


Lá pelo terço final do romance “Soldados de Salamina”, de Javier Cercas, o escritor Roberto Bolaño surge como personagem para fazer uma curiosa intervenção no rumo da história. Quando o protagonista, que escreve um livro sobre a guerra civil espanhola e não consegue encontrar uma testemunha-chave do conflito, indaga de Bolaño o que deveria fazer, o autor chileno não hesita:

"- Você terá que inventar a entrevista com Miralles. É a única e a melhor forma de terminar o romance. (...) A realidade sempre nos trai; o melhor é não dar tempo a ela e traí-la antes. O Miralles real te decepcionaria; é melhor que o invente: seguramente, o Miralles inventado é mais real que o real."

Contar mais é estragar o final do livro, que merece ser lido. Mas a importância do trecho não está somente no fato de estabelecer a virada principal na trama de “Soldados...”, mas principalmente na forma como simboliza o atual papel de Bolaño como guru do que de melhor tem surgido na literatura em língua espanhola nos últimos anos.

Morto precocemente em 2003 após uma série de complicações hepáticas, Bolaño deixou cerca de 20 livros, entre romances, contos e poesia, nos quais, não é exagero dizer, conseguiu reinventar a literatura latino-americana sem negar sua tradição. Misturando o urbano com o pitoresco e buscando referências na cultura européia, o escritor chileno criou uma obra que consegue ser pop sem ser rasa, um pastiche de estilos e referências que leva finalmente a literatura latino-americana ao encontro do (pós-)pós-moderno e permite que ela escape, enfim, das amarras do realismo fantástico. Nesse sentido, ele se liberta, e liberta a própria literatura do nosso subcontinente, de um certo autocentrismo, partindo rumo a uma universalidade enriquecedora que, ao se espelhar em outras tradições, consegue definir melhor sua própria identidade.

Não que essa transgressão seja necessariamente pioneira. Mas o mérito de Bolaño é assimilar o antigo e o vanguardista, pôr tudo no liquidificador e assim criar o novo. Em “Os Detetives Selvagens”, considerado por muitos sua obra-prima, é possível encontrar um experimentalismo que costuma render comparações com Julio Cortázar, ainda que o estilo do chileno não possua o hermetismo do seu colega argentino. Isso porque, nos livros de Bolãno, há pluralidade de narradores, há metanarrativa, mas há sobretudo uma boa história, muitas vezes convencional, quase sempre romântica. Seus livros agarram o leitor e o levam por uma jornada apaixonante, em que a tragédia e o patético freqüentemente se confundem. Seus personagens são invariavelmente escritores, que se jogam no mundo em pequenas aventuras, à procura de algo que não sabem definir (de si próprios?).

Essa obsessão por protagonistas latinos, exilados e malditos reflete a própria biografia do autor. Após apoiar Salvador Allende e ser preso por Pinochet, Bolaño abandonou o Chile e correu o mundo. Morou no México, em El Salvador, na França e na Espanha. Foi vigia noturno, camelô, guerrilheiro, boêmio, vagabundo. Passou necessidade, escreveu para sobreviver, usou muitas drogas. Em recente matéria publicada pela Folha de S. Paulo, Sarah Pollack, professora da City University de Nova York, chega a definir a aura cool de Bolãno como “uma mistura dos beatniks com Rimbaud”.

A comparação do escritor chileno com o famoso movimento sócio-cultural-filosófico-literário surgido nos EUA durante os anos 50 não merece parar por aí. No já citado “Os Detetives Selvagens”, os dois protagonistas, Ulises Lima e Arturo Belano (Belano, Bolaño, pegou?) partem em um carro rumo ao deserto de Sonora, à procura de uma poetisa perdida, antes de saírem viajando pelos mais diversos países. É uma espécie de “On the road” da era da globalização, já que, aqui, a estrada é substituída pelo próprio mundo.

E, assim como no clássico beat de Kerouak, o que o leitor encontra em “Os Detetives Selvagens” é uma história envolvente, daquelas que despertam uma vontade imensa de se viver uma experiência parecida, repleta de personagens capazes de deixar saudades após se chegar à última página. É inegável que a intensidade e a riqueza da narrativa se devem à vivência de Bolaño, que realmente passou por grande parte das peripécias às quais submete seus personagens. Não é à toa que, a certa altura de “Soldados de Salamina”, ele comente com o protagonista:

“- Para escrever romances, não é preciso imaginação. Só memória. Os romances se escrevem combinando lembranças.”

Para nossa felicidade, lições como essas vêm sendo assimiladas e aplicadas pelos inúmeros escritores que, através de seu estilo ou temática, dão atualmente continuidade ao legado de Bolaño para a literatura do nosso subcontinente e, por que não, do resto do mundo.

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O melhor de Roberto Bolaño:
"Os Detetives Selvagens" – A obra-prima
"2666" – Os méritos e defeitos de “Detetives” elevados à 2666ª potência
"Noturnos do Chile" – Para os iniciados no universo do autor
"Putas Assassinas" e "Llamadas telefónicas": os melhores livros de contos

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Alguns dos escritores que foram influenciados por Bolaño, ou fizeram parte de seu círculo de amizades, ou exploram temática similar à do escritor chileno:

Enrique Vila-Matas (ESP)
Antonio di Benedetto (ARG)
Rodrigo Fresán (ARG)
Alan Pauls (ARG)
Alberto Fuguet (CHI)
Javier Cercas (ESP)

Quem paga?

Há um ano ficou quente a discussão sobre o futuro dos jornais e revistas online. Várias companhias do primeiro escalão da mídia global simplesmente não sabem como ganhar dinheiro com a internet e a crise econômica deixou essa situação ainda mais aparente. Um ano depois, começa uma segunda onda de revisão do modelo de negócios da mídia online. A primeira onda foi a abertura de sites com base na tese de que o fluxo maior de visitantes faria decolar a receita com anúncios - foi nessa fase que o The New York Times abriu todo seu conteúdo, por exemplo. Era a reversão do modelo original, em que os sites eram uma espécie de complemento para assinantes da versão em papel. Nem todos aceitaram a tese, como foi o caso do Financial Times, do Wall Street Journal e, no Brasil, da Folha de S. Paulo. São eles que servem de modelo agora. Nesta semana, a revista britânica The Economist fechou seu site. Quem quiser, pode fazer uma assinatura da versão online, ou do impresso com direito a entrar no site. Vamos ver outras ações desse tipo. É provável que a internet fique de vez dividida entre os sites de informação rápida e superficial, gratuitos e com receita unicamente de anúncios, e aqueles que têm conteúdo próprio de alta qualidade e, claro, fechado. Para os jornais e revistas que ainda não decidiram de que lado estão, é hora de agir.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

9 - A salvação



É possível dizer que o segredo de um bom filme de aventura geralmente não está nas explosões, na edição dinâmica ou nas seqüências de luta bem coreografadas, mas sim na habilidade do protagonista em despertar a empatia do público. Uma vez cumprido esse item, um diretor talentoso consegue transformar até mesmo uma agulha enferrujada em uma ameaça capaz de deixar a platéia em polvorosa.

A falta dessa identificação entre o espectador e herói de “9 – A salvação” é provavelmente o único (e grande defeito) desse longa de animação dirigido e roteirizado pelo estreante Shane Acker. A história tem início quando 9, uma espécie de bonequinho vudu high tech, acorda em um prédio em ruínas, cercado por uma paisagem pós-apocalíptica. Aos poucos, ele encontrará uma pecinha eletrônica que não sabe bem para o que serve e se verá envolvido em uma missão que não sabe bem do que se trata, ao lado de outros bonecos semelhantes que não sabe bem quem são. Ao invés de instigar, todo esse mistério acaba por manter o público em uma postura quase indiferente, mesmo quando algum monstro aterrador surge em cena ou quando algum dos personagens principais morre.

Nada contra filmes em que a história é um quebra-cabeça que precisa ser montado aos poucos. “Amnésia” e “Oldboy” estão aí para mostrar que a fórmula funciona. Mas, nesses casos, o processo de construção do passado é a própria história. Em “9 – A salvação”, a relação entre os personagens carece de uma contextualização e, assim, perde sua força, prejudicando a narrativa. Por que 9 se importa tanto com 2, se ambos mal se conheceram? Por que 9 parte rumo à fábrica se mal sabe o que existe lá? Ao final, algumas respostar irão surgir e a história irá se fechar, mas aí já é tarde demais para que a platéia se importe.

Essa falha se torna ainda mais lamentável à medida que todos os outros aspectos do filme se revelam irretocáveis. O apuro técnico da direção de arte, incluindo o visual aterrador dos vilões, é acachapante. A edição de som revela um cuidado com os mínimos detalhes (perceba o ruído que o zíper da barriga de 9 faz ao balançar enquanto o personagem caminha). As texturas, a fotografia (posso falar em fotografia em uma animação?), tudo é impecável. E, mesmo assim, o filme não arrebata.

O resultado é um longa estranho, que não encontra seu público: é sinistro demais para levar as crianças, e sua história tem demasiadas lacunas para chegar a satisfazer os adultos. Mas o que mais incomoda é a sensação, ao sair do cinema, de que, apesar de tudo, estamos ávidos por voltar àquele universo, saber mais sobre sua mitologia e seus personagens. Mais uma prova de que todo filme brilhante, independente de seu gênero, tem por início um bom roteiro.

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“9 – A Salvação” é uma espécie de “spin off” de “9”, curta de animação que concorreu ao Oscar de 2006 em sua categoria. Também dirigido por Shane Acker, o filme é tão sinistro quanto seu sucessor. Confira abaixo.



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Se gostar de “9 – A salvação”, procure também: “Coraline” e “O estranho mundo de Jack”, ambos dirigidos por Henry Selick.

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Título: 9 – A salvação
Diretor: Shane Acker
Gênero: Animação
79 minutos

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Kindle: nunca vi nem comi, eu só ouço falar


Feche portas e janelas. Coloque o gato para dentro. O Kindle vem aí, e com força total. Saiu na Veja. Foi até capa da Época. E, em breve, estará na sua casa. Talvez seu filho já esteja usando um Kindle escondido e você nem saiba.

As editoras estão alvoroçadas. Também, não é para menos: o livro “O símbolo perdido”, de Dan Brown, teria vendido mais versões no formato digital do que no impresso. Especialistas dizem que é o começo do fim dos livros tal qual os conhecemos. Será que realmente há motivo para tanto alarde?

Difícil dizer, mas este blogueiro acha que não. Passado o hype, o mais provável é que tudo volte à normalidade e o Kindle seja apenas mais um formato disponível para os fãs de uma boa leitura. Talvez haja um boom nas vendas de livros eletrônicos tal qual ocorreu com o advento dos CDs nos anos 80 e 90: muitas pessoas correram para atualizar suas coleções de vinis, dando a impressão de que os lucros astronômicos eram para sempre e que o caminho da digitalização era irreversível. O que se viu foi o contrário: demorou, mas as vendas de CDs se estabilizaram e passaram a cair, e o vinil passou de item cult para melhor opção para aqueles que realmente curtem música.

A analogia é óbvia: da mesma forma que um fã de jazz não se contenta em ouvir John Coltrane em um arquivo de 128 kbps, da mesma forma que um fã de cinema não aceita assistir a “Crepúsculo dos Deuses” na tela do computador, é possível que um fã de James Joyce considere que a experiência de ler “Ulisses” numa telinha de cristal líquido não seja algo lá muito transcendental. “E o que explica o sucesso do livro de ‘O símbolo perdido’?”, perguntará o astuto leitor. Bom, pra mim sempre ficou claro que um fã de Dan Brown é capaz de se contentar com pouca coisa.

Isso porque o livro físico possui um fator “fetiche” que não pode ser desprezado. Eu sei, dizer isso já virou clichê, mas é verdade. Ao menos para mim é. Gosto do cheiro da folha dos livros. Tenho prazer em passear em livrarias, olhar capas. Às vezes me surpreendo admirando meus próprios exemplares.

Mas a idéia de ter um Kindle não me desagrada nem um pouco: já estou cansado de ser extorquido financeiramente pelas importadoras. Talvez, com um Kindle, possa finalmente realizar meu sonho de consumo e assinar a “The New Yorker” sem ter que pagar R$ 42 pela edição (nos EUA, cada exemplar sai por menos de um dólar). Além disso, em tempos de correção política, um Kindle possui um apelo inegavelmente ecológico: um livro de papel pode consumir uma árvore inteira, ou mais. Um livro digital consome apenas a matéria-prima com a qual é fabricado, e olhe lá.

Mas talvez a grande vantagem do livro eletrônico seja esta: ninguém vai ser cara de pau o bastante para pedir seu Kindle emprestado. Então dê adeus àquele seu amigo folgado que nunca devolve seus livros e que acredita que a orelha serve para marcar a página onde se parou a leitura. Por outro lado, esqueça também a idéia de levar aquela gatinha para ir até sua casa conhecer a sua biblioteca. A não ser que você se dê por feliz em expor sua coleção na tela do Kindle, com “Coltrane for lovers” tocando no último volume em seu iPod.

Seja incoerente

Acompanhe a sequência de matérias:

Revista Veja - 26 de agosto de 2009
Nazismo em todo lugar
Admirador da obra do italiano Primo Levi, escritor que sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, o advogado americano Mike Godwin participava, em 1990, dos grupos de discussão da rede Usenet, espécie de antepassada da internet, e irritava-se com a leviandade com que os debatedores recorriam a analogias com o nazismo para desqualificar o argumento dos adversários. Foi então que ele cunhou a Lei de Godwin: "À medida que uma discussão on-line se alonga, a probabilidade de uma comparação envolvendo Hitler ou o nazismo se aproxima de 1". (Na linguagem matemática da probabilidade, 1 equivale a 100%.) Godwin fez uso paródico da matemática com o objetivo de alertar para a banalização do nazismo. E, embora a lei por si só não estabeleça juízos sobre o valor de comparações com o regime de Hitler, ela sugere, sim, que esse expediente desqualifica a discussão. Afinal, de que adianta ir em frente se uma das partes está disposta a vencer pelo autoritarismo, ou até mesmo pela violência? No Brasil e no mundo, os debates públicos não se cansam de corroborar a Lei de Godwin. (...) Como lembra o filósofo Roberto Romano, as palavras, como a moeda corrente, estão sujeitas à inflação. É comum que termos políticos percam o sentido e o valor pelo uso indiscriminado: fascista, neoliberal, republicano, cidadania. O nazismo, contudo, marca o paroxismo do Mal na história moderna. Foi um episódio extremo – e perde-se muito em vulgarizar o conceito.



Revista Veja - 23 de setembro de 2009
Ela é Megan. Não precisa ser meiga.
A atriz MEGAN FOX, 23 anos, é sexy, atrevida e estonteantemente parecida com Angelina Jolie. E complicada, reputação confirmada quando deu de falar mal de Michael Bay, diretor de Transformers, o filme que a lançou para o sucesso."É um Hitler", comparou, derrapando na Lei de Godwin das analogias nazistas. "Megan é burra como uma porta. Nem deve saber quem foi Hitler", diz uma carta de três anônimos dos bastidores das filmagens – Godwin, então... Também é difícil, mal-humorada e mal-educada: "Nunca agradeceu o duro que demos para esconder aquela tatuagem ridícula de Marilyn Monroe que tem no braço". A carta, publicada no site do diretor, foi retirada, e ele pôs panos quentes: "Não apoio. As declarações malucas de Megan são parte do seu charme maluquete".



Revista Veja - 14 de outubro de 2009
A SS de Hugo Chávez
O presidente Hugo Chávez deu um passo largo em seu projeto de implantar uma ditadura fascista na Venezuela. Na semana passada, a Assembléia Nacional, dominada por seus partidários, aprovou uma reforma da legislação sobre as Forças Armadas cujo objetivo foi equiparar as milícias de Chávez aos militares do país. Já no próximo ano, esses arruaceiros fardados terão salário fixo, armamento e poder de destruição comparáveis ao do Exército regular. A existência de uma tropa de choque à margem das instituições e diretamente ligada ao líder supremo é uma característica do fascismo. Adolf Hitler chegou a ter duas milícias distintas, cujas ações incluíam maltratar os judeus, dispersar comícios esquerdistas e empastelar jornais. Depois de assumir o poder, ele mandou destruir uma delas, a SA, por causa de desavenças dentro do partido nazista. A outra, a famigerada SS, recebeu armamento pesado e se tornou executora dos abomináveis crimes do regime. O italiano Benito Mussolini contava com os camisas-negras para torturar oposicionistas e acabar com greves. Foi marchando à frente de seus milicianos que ele chegou a Roma para tomar o poder. (...)



Então tá. Tipo, a gente pode, eles, não. Como diria minha avó, é o sujo falando do mal lavado.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Abril Vermelho


O promotor distrital adjunto Félix Chacaltana Saldivar é um funcionário simples, quase simplório. Executa suas tarefas com presteza, leva uma vida solitária e sonha com uma promoção que, acredita, poderia redimi-lo aos olhos da ex-mulher. Certamente se daria por satisfeito se tudo seguisse nessa toada, não fosse estar envolvido na investigação de uma série de assassinatos brutais que tem início em sua cidade natal, a pequena Ayacucho, localizada no sul do Peru.

Acreditando estar prestando um serviço aos seus superiores, Chacaltana passa a buscar pistas por conta própria. Todos os indícios levam à conclusão de que a autoria dos crimes se deve ao Sendero Luminoso, fato que chama rapidamente a atenção da polícia e dos militares, que passam a ver no protagonista de “Abril Vermelho” um adversário aos seus próprios interesses.

Não é difícil de entender o porquê. Estamos nas vésperas das eleições presidenciais de 2000. Alberto Fujimori concorre mais uma vez ao pleito, usando como uma de suas principais plataformas a diminuição da violência e a eliminação dos focos terroristas. Qualquer notícia capaz de trazer a insegurança de volta à população é vista com maus olhos por aqueles que estão no poder.

Em sua empreitada quixotesca, Chacaltana irá esbarrar na burocracia dos órgãos envolvidos e no desinteresse dos colegas, que, em busca da ascensão profissional, não temem confundir consentimento com eficiência. Descobrirá matizes, até então por ele desconhecidos, entre as noções de certo e errado. E atravessará um arco narrativo que envolve a perda de sua inocência, a opção ciente pelo cinismo e o enveredamento por um caminho irreversível.

Com um estilo fluído e uma fina ironia, o escritor Santiago Roncagliolo traça um retrato impiedoso da sociedade peruana, que busca por uma purificação que não está na justiça nem na religião. O rancor entre as classes é crescente: a etnia quíchua, que forma o grosso da parcela desfavorecida, é vista pelos personagens como um povo limitado, sem direitos e sem representatividade. A violência impregna todas as esferas e não é à toa que os televisores estão sempre mostrando pessoas se agredindo e disputas familiares no melhor estilo “Márcia”. Os mortos na busca pela paz já são por demais numerosos para se manterem enterrados, e clamam para que se dê um sentido ao seu sacrifício. O resultado é uma guerra na qual não se sabe mais quem é o mocinho e quem é o bandido, porque as forças armadas e os terroristas há muito se confundem nas intenções e nos procedimentos.

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Em 2003, realizei, ao lado de quatro amigos, um projeto antigo: fazer um mochilão pelo Peru e pela Bolívia. Conforme o planejado, conheci todos os cartões postais e fiquei maravilhado com as ruínas históricas e com as belezas naturais dos dois países. Mas também vivi uma experiência marcante que não constava de nenhum dos guias de turismo sobre a América Latina.

Um dia, ao descer de um ônibus em La Paz, percebi que havia esquecido minha carteira sobre o banco. Rapidamente apanhei outro veículo da mesma linha, sem saber que o próximo ponto era muito, mas muito distante. Acabei parando no meio das cadeias de montanhas que cercam a cidade, uma curiosa série de formações geológicas que se assemelham a um castelo de areia molhada ou a um prédio de Gaudí. É lá onde moram, em sua grande maioria, os quíchuas pacenhos, etnia cujos representantes se consideram orgulhosamente os descendentes diretos da civilização inca.

Quem já viajou pelos países andinos é capaz de reconhecer um quíchua sem maiores dificuldades. Os homens têm estatura baixa, traços indígenas e geralmente se vestem com calça preta e camisa social clara. As mulheres levam um inconfundível chapéu coco e sempre carregam às costas uma trouxa de pano, onde costumam levar objetos de uso pessoal ou crianças de colo com cabeças balouçantes. Presentes na maioria dos países andinos, os quíchuas em geral levam uma vida miserável, escassa em alegria e dignidade. Sua presença oscila entre o inconveniente e o invisível. Muitas vezes são vistos como criminosos, mal intencionados e vagabundos.

Até aquele momento, todo o contato que eu havia tido com os quíchuas se restringia às insistentes mulheres que, aos gritos de “señor, señor”, pediam esmolas e vendiam badulaques em frente aos pontos turísticos, carregando criancinhas que, com roupas típicas, tiravam fotos com os turistas em troca de alguns centavos. Logo, essa impressão iria mudar.

Ao entrar nas montanhas, fui surpreendido por uma efusão de vitalidade. O bairro estava em festa. Um campeonato de futebol feminino transcorria em um campinho de areia, concentrando a atenção de centenas de moradores, que gritavam e cantavam entusiasticamente. Ao invés de humildade e subserviência, os olhares ostentavam orgulho e alegria. Todas as ruas estavam enfeitadas por bandeirinhas e outros ornamentos típicos, que sacudiam em sintonia com as festividades. E, ao lado de um conjunto de música andina, um menino de cerca de quatro anos fazia air guitar com uma garrafa pet de 2 litros. Não quero parecer sentimental, mas, em toda minha vida, nunca vi uma criança extrair tanta diversão de um brinquedo.

Acabei não recuperando a carteira: ela já havia desaparecido. Mas o passeio acabou valendo muito mais do que as poucas notas que ela continha.

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No dia seguinte, ao voltar de uma partida de futebol entre Bolívar e The Strongest, o grande clássico boliviano, chamaram minha atenção as centenas de luzes elétricas que partiam das casas dos quíchuas escondidas nas montanhas. Aquela visão conferia à noite de La Paz um aspecto quase surreal. Senti que olhava para um céu estrelado, não só pelos inúmeros pontinhos luminosos, mas por saber que aquele era um brilho emanado do passado, de uma glória extinta, que não mais correspondia à realidade atual.

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O Sendero Luminoso surgiu e teve seu auge nos anos 80, durante o primeiro mandato do atual presidente Alan García. Era um grupo guerrilheiro de extrema esquerda, que se propunha a instaurar um regime comunista liderado por camponeses no Peru. Aos poucos, os valores se subverteram, a organização se transformou em um fim em si mesma e, como tantas outras do gênero, acabou prejudicando aqueles que afirmava defender. O grupo foi duramente reprimido por Fujimori durante o final dos anos 90 e, desde então, vem tentando se manter vivo, através de ações terroristas esporádicas.

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Em 2006, a população indígena boliviana acreditou ter em Evo Morales um representante de sua classe, alguém capaz de entender e fazer valer seus anseios e suas necessidades. Deu no que deu: medidas populistas, muita fanfarronice e pouco resultado prático. O país continua entre os mais pobres da América Latina e sua economia segue extremamente dependente da exportação de recursos naturais. A desigualdade só faz crescer.

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Comprei meu exemplar de “Abril Vermelho” nas Livrarias Curitiba no dia 03/10, em uma promoção insana, em que diversos livros da Alfaguara (incluindo “As Benevolentes”, que não costuma sair por menos de R$ 80) estavam sendo liquidados por R$ 9,90. Até este final de semana, a promoção continuava valendo. Corre lá e aproveita.

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Se gostar de “Abril Vermelho”, procure também: “A cada um o seu”, de Leonardo Sciascia, e “A hora azul”, de Alonso Cueto.

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Título: Abril Vermelho
Autor: Santiago Roncagliolo
Editora: Alfaguara
292 páginas